Como é viver a quarentena na Inglaterra
Mais severa que no Brasil, medida instituída pelo governo britânico ainda deve durar bastante tempo
O jornal Folha de São Paulo convidava nesta semana seus leitores no exterior para descrever como tem sido enfrentar a quarentena causada pela pandemia do coronavírus em outros países. Daí veio a ideia de compartilhar aqui essa experiência nada agradável que vivemos no Reino Unido, mais precisamente num subúrbio de Londres, a cerca de 24 km do centro da capital do país.
Confesso que a sensação tem sido um tanto alarmente, visto que não só estamos preocupados com nossas famílias e amigos no Brasil, que vê a doença chegando a níveis alarmantes, como também vivemos em um dos países mais atingidos pela Covid-19. Embora a rotina diária seja muito parecida com nosso país de origem, existem algumas diferenças, boas e ruins, desse lado do mundo. Vou resumir em tópicos para facilitar:
A quarentena
Aqui é chamado de “lockdown” (confinamento), termo que se espalhou pelo mundo. E a sensação é essa mesma já que há poucas atividades permitidas. Em tese, só podemos sair para compras básicas, alguma atividade física desde que sozinhos ou com a própria família, mas mantendo uma distância segura de outras pessoas. Embora não seja obrigatório, o uso de máscaras é muito comum em qualquer situação.
Saúde
Sem dúvida, é o aspecto mais preocupante para qualquer ser humano hoje em dia. Na Inglaterra, ao contrário do Brasil, o sistema público de saúde é praticamente universal e com isso dependemos do funcionamento do chamado NHS, uma espécie de SUS britânico. Durante o tempo que estamos aqui (cerca de 14 meses), não temos do que reclamar. Há médicos experientes e atenciosos e o acesso a certos exames é muito grande. Mas, claro, por ser público, há uma certa burocracia para utilizá-lo e a situação atual tornou isso mais complicado.
Qualquer consulta aqui tem ser feita no GP (General Practice), um posto de saúde que existe em cada bairro, por assim dizer. É nele que está o seu cadastro e histórico e onde você pode passar com um clínico geral. Caso sinta necessidade de lhe encaminhar para um especialista, ele próprio irá agendar no sistema do NHS uma consulta. Mas com a pandemia, o atendimento pessoal está suspenso, o que significa que temos que ligar e aí tentar uma consulta por telefone. Sim, se não há nada grave, é assim que vão lhe atender. Caso seja preciso algum exame presencial, eles abrem uma exceção.
Se a suspeita recai nos sintomas do coronavírus, no entanto, a orientação é outra, ligar no telefone 111. Dependendo do seu quadro, você pode comparecer a um hospital ou até ser levado por uma ambulância em situações mais graves. O NHS anda sobrecarregado com os casos do vírus, mas relatórios do governo mostram que o número de pessoas internadas vem caindo nas últimas semanas.
Educação
As escolas estão fechadas, exceto para os chamados trabalhadores vitais, que podem deixar seus filhos nela, mas apenas para cuidados leves e não para o estudo em si. Os professores, no entanto, estão colocando nos sites das escolas várias lições e orientações para manter as crianças com alguma atividade. Mas é claro que é bem mais difícil fazê-los estudar.
Comércio
Talvez aqui esteja uma das diferenças maiores com o Brasil. Embora ambos os países estejam com o comércio restrito, aqui aparentemente há menos estabelecimentos funcionando. No nosso bairro, por exemplo, temos um supermercado, um minimercado, uma pequena padaria (não nos moldes do Brasil) e uma farmácia abertos durante o dia. Também há um ou outro restaurante realizando delivery, mas muitos estão fechados como os famosos pubs, justamente por atraírem concentração de pessoas. Imagine o humor do inglês sem sua cerveja ou cidra…
Mas mesmo o que está aberto obedece a regras de distanciamento que mostramos aqui. Nos supermercados entra-se à medida que outra pessoa sai e não é permitido fazer compras em casal, por exemplo. Claro que muita gente dribla isso ao ficar em pontos diferentes da fila, mas em geral a medida funciona e o interior da loja é bastante tranquilo para fazer compras. Em locais menores, geralmente permanecem apenas duas pessoas em seu interior. Felizmente, a educação ajuda e não há gente furando fila ou tentando quebrar as regras.
Depois de uma certa corrida às compras, a situação acabou e hoje encontramos quase tudo, inclusive o papel higiênico. Já a farinha de trigo está difícil – dizem que os ingleses estão assando bolos e pães aos montes em casa…
Já o delivery tem funcionado bem, com um pequeno atraso em algumas entregas, mas sem cobranças de taxas extras, como ouvimos falar que ocorre no Brasil. Isso é um lado ruim porque a população aqui tem deixado de fazer compras em lojas físicas, causando o fechamento de muitos comércios. Imagine então agora que se tornou a única opção.
Lazer
É uma das situações mais complicadas porque os bairros são muito tranquilos e chega uma hora que ficar dentro de casa parece impossível. Então é hora de uma caminhada agradável pelas ruas, respeitando a distância mínima de 2 metros de outras pessoas.
Me surpreendeu nesse aspecto a educação dos ingleses. Na primeira vez que vi alguém vindo em direção contrária atravessar para a outra calçada me senti um pouco ofendido, pensando que estava me evitando, mas depois compreendi que é uma forma de preservar o outro – as pessoas se afastam mas de forma simpática, algo que soa inconcebível.
Claro que há situações surreais como a que aconteceu conosco no início de abril. Com seu tempo chuvoso e frio, Londres dá poucas tréguas e eis que tem feito muitos dias de sol desde o início da quarentena. Bem, num belo domingo resolvemos pegar o carro e sair da nossa “prisão” para dar uma volta num belo parque há cerca de 5 km daqui. Tínhamos entendido que o governo evitaria a formação de aglomerações em ambientes públicos e, ao chegar no local, que estava vazio, não tivemos dúvida em procurar uma área isolada para estender nossa toalha e deixar as crianças correrem um pouco.
Uma hora depois, uma policial extremamente educada veio nos interpelar pedindo mil desculpas, mas afirmando que “não é permitido parar, apenas andar” no parque. Estávamos distantes pelo menos 300 metros de qualquer ser humano e numa área onde ninguém se aproximava, mas regra é regra e aí entendemos que nem isso é possível no momento. Hoje ainda damos umas escapadas semanais para andar em outros parques (que não faltam aqui), mas sem ficar parados.
Trabalho
Eis aí uma vantagem, ao menos por enquanto. O governo britânico, ciente do estrago que a quarentena poderá provocar nas finanças da população e das empresas, instituiu uma ajuda financeira para que os trabalhadores em licença não remunerada recebam até 80% dos seus salários. É uma medida que deve durar até maio, embora estejam pleiteando uma extensão, porém, ela ajudou muita gente a ficar um pouco mais em paz em casa, mesmo diante de um cenário nada animador.
Transporte
Com tanta gente em casa, embora pareça que muitas vezes o bairro está deserto tamanho o silêncio por aqui, não é de estranhar que ônibus e trens estejam circulando praticamente vazios em Londres. Muita gente tem optado por usar o automóvel, afinal não há trânsito e os “key workers” (trabalhadores vitais) podem circular com mais facilidade pela cidade. Algo que São Paulo, por exemplo, não consegue implementar, com muitas pessoas que precisam do transporte público.
Pré-quarentena
Viver confinados por semanas é algo que poucos suportam e não vemos a hora de poder ir ao centro de Londres, onde literalmente “nos encontramos”, com sua cultura, lazer e história. Isso, no entanto, é algo que deve demorar e saída é buscar forças para manter a família unida e centrada, além de aproveitar para aprender coisas novas e conviver mais uns com os outros.
Curiosamente, a nossa vinda para a Inglaterra no ano passado acabou sendo uma pré-quarentena em alguns sentidos. Sozinhos num país desconhecido, já passamos a viver mais juntos e dividindo alegrias e tristezas, sobretudo da separação de nossas raízes no Brasil. É, sem dúvida alguma, doloroso demais não poder estar em contato com nossos familiares nesse momento, sobretudo porque tínhamos uma viagem marcada para abril a fim de reencontrá-los. No entanto, certamente é tão difícil quanto estar perto das pessoas que amamos e não poder abraçá-las, como tem acontecido com muitas pessoas em nosso país.